Amo minha profissão porque diariamente vivencio encontros e trocas com pessoas das mais diversas origens, culturas, opiniões, histórias e condições de vida. Além disso, não é incomum para mim, na posição de terapeuta, ter que saber manejar a curiosidade de meus pacientes sobre minha vida privada. Até porque, nada mais natural você querer em troca […]
Amo minha profissão porque diariamente vivencio encontros e trocas com pessoas das mais diversas origens, culturas, opiniões, histórias e condições de vida. Além disso, não é incomum para mim, na posição de terapeuta, ter que saber manejar a curiosidade de meus pacientes sobre minha vida privada. Até porque, nada mais natural você querer em troca um pouquinho de informações daquela pessoa para a qual você acabou de expor algumas de suas maiores intimidades. Com muitos é só assim que o vínculo terapêutico se estabelece.
Hoje era para ser apenas mais uma manhã corriqueira de trabalho, alguns atendimentos individuais e uma sessão de grupo junto a pacientes que se encontram em situação de rua e são usuários de múltiplas drogas. Mas algo aconteceu. Não que nunca tenha acontecido antes, aliás já aconteceu inúmeras vezes comigo. Porém, independentemente de quantas vezes isso já tenha acontecido, não consigo deixar de sentir certo, diria, estranhamento. A situação é a seguinte: a pessoa acabou de me conhecer, troca algumas palavras comigo naquele contexto de atendimento, me observa de cima a baixo e logo emana sua recém-nascida opinião. Qual é ela? Ah, acho que você já sabe, é só olhar a minha foto que escolhi cuidadosamente para esse texto… Para quem não sacou ainda qual a fatídica recém-nascida opinião do sujeito a respeito de minha pessoa, ou para quem não consegue elaborar uma opinião certeira sobre alguém somente conhecendo sua imagem (sei que vocês existem!), lá vai: mimadinha, filhinha de papai, não entende nada da vida, fresquinha (essa é a melhor), nojentinha (ah não, essa ganha!), nunca sofreu na vida, nunca teve que lutar para conquistar nada do que tem, e por aí se segue.
Sempre que isso acontece (infelizmente já perdi a conta de quantas vezes já aconteceu) eu tento gerar uma reflexão no grupo sobre o conceito de estereótipos. Afinal de contas, não estamos lá para discutir SOBRE MIM, mas sim para tentarmos refletir e compreender os conteúdos trazidos ATÉ MIM, analisando-os como reflexos do que tal sujeito ou sujeitos experenciam fora do setting terapêutico. Geralmente eu adoto uma postura provocativa, neste caso, promovendo o debate sobre o estereótipo da pessoa em situação de rua (ou morador de rua): violento, perigoso, bandido, bêbado, nóia (vulgo nome associado ao usuário de crack), estuprador, e tantos outros adjetivos um tanto quanto ofensivos. E aí devolvo para grupo: essa descrição representa o que são vocês? Todos vocês, de forma generalizada? É claro que a negativa é unânime. Depois disso, tento manejar da melhor forma possível o sentimento de vergonha com que aquele sujeito da opinião recém-nascida sobre mim demonstra sentir. Está tudo bem, compreendo você e sua manifesta opinião imatura e impulsiva.
Quis escrever sobre essa experiência aqui por um sentimento de inquietude que me assola quando me deparo
com a necessidade de algumas pessoas em sair rotulando, agrupando e aniquilando as singularidades das pessoas, que, no meu ver, é o que de mais belo há na experiência em ser humano. Generalizações são superficiais, machucam, ofendem e nada contribuem para o bom convívio em sociedade. Fora do setting terapêutico pode causar confusões tremendas nas quais a lista de prejudicados pode incluir, inclusive, o próprio rotulador ou emissor de opinião.
Quero lançar a campanha “Diga não aos rótulos, aprecie a reflexão sem moderação”! Será que faria sucesso?