A família faz parte da rede social do indivíduo. Rede esta que é um sistema aberto em permanente construção individual e coletiva e que é fonte de espelhamento, reconhecimento e, consequentemente, de sentimento de identidade. Se pretendemos compreender o fenômeno do uso problemático de drogas devemos considerar o aprofundamento do estudo da história da dinâmica […]
A família faz parte da rede social do indivíduo. Rede esta que é um sistema aberto em permanente construção individual e coletiva e que é fonte de espelhamento, reconhecimento e, consequentemente, de sentimento de identidade. Se pretendemos compreender o fenômeno do uso problemático de drogas devemos considerar o aprofundamento do estudo da história da dinâmica familiar de cada sujeito.
Atualmente, o entendimento do que é a unidade/instituição familiar vai muito além da antiga ideia de ‘núcleo familiar’ (pai, mãe e filhos): a família hoje é constituída pela ampla diversidade de configurações e é cada um de nós que legitima sua família ou a dinâmica familiar a qual se pertence. Os vínculos familiares vão além da consanguinidade. Por exemplo, um cenário muito triste, mas real, é aquele no qual o sujeito está integrado à família do tráfico, que é extremamente organizada em regras, valores e hierarquias, o que se torna muitas vezes mais funcional do que a própria organização familiar de sua origem. Ou seja, na família do tráfico ele tem uma função legitimada, valorada, o que, por vezes, vai contribuir significativamente para a construção de sua identidade e lhe oferecer um sentimento de pertença.
Saliento aqui duas perspectivas pelas quais podemos pensar e debater as relações entre uso de drogas e dinâmicas familiares: 1. famílias que estão em sofrimento em virtude do já estabelecido uso problemático por parte de um ou mais de seus membros e como cuidar destas relações a fim de promover cuidado e bem estar para todos os envolvidos; 2. famílias que desejam atuar na prevenção do uso precoce de drogas e neste contexto o diálogo é com as figuras paternas e maternas de crianças e adolescentes. Neste texto pretendo aprofundar a discussão na perspectiva preventiva. Mas, para isso, é preciso refletirmos sobre os significados das relações construídas no âmbito familiar.
Todos nós buscamos sentidos em ou para nossas vidas desde o momento em que respiramos fora do ventre de nossas mães. Tal “sentido” da vida poderá ser encontrado somente nas relações, nas trocas de cuidado que vamos vivenciando ao longo de nossos anos. Vivemos em busca de proteção para o acobertamento do desamparo essencial que nos é constituinte. Somos seres sociais, nos constituímos no olhar do outro, “aquilo que olho e o que me olha de volta”. As primeiras relações de um bebê, essencialmente com as figuras paternas e maternas, são essenciais para a estruturação, bem ou mal adaptada, de nosso psiquismo, o que afetará diretamente seu funcionamento por toda a vida.
Neste contexto, a família será aquela que provê o cuidado e proteção que todos precisamos, especialmente nos primeiros anos de vida. A pergunta que fica é: quem são as famílias de hoje? As figuras maternas e paternas estão prontas para exercer a função de cuidado que é esperada delas? Como que essas questões familiares podem contribuir ou não para o desenvolvimento de crianças, adolescentes e adultos com bons níveis de saúde mental? Como a família pode atuar de forma protetiva para o uso de drogas e adoecimento mental?
De forma geral, sabemos que a ausência do sentimento de pertencimento e de valoração do papel social da criança ou do adolescente no interior da dinâmica familiar são, por excelência, fatores de risco para as mais diversas formas de adoecimento mental. Na ausência desses sentimentos dentro de casa, possivelmente o jovem irá fazer essa busca em outros contextos ou grupos. Importante reforçar que a droga pode ser entendida como sintoma ou busca de alívio do desamparo ou exclusão sentidos na dinâmica familiar.
Já existem evidências científicas (1–3) de que algumas tipologias de dinâmicas familiares são menos ou mais protetivas à exposição precoce as drogas por crianças e adolescentes. Estamos falando sobre os estilos parentais, ou seja, o estilo que as figuras materna e paterna adotam para se relacionarem com seus filhos e seu processo de educação. Para entendê-los falaremos sobre ‘exigência’ e ‘responsividade’, sendo o primeiro entendido como atitudes de supervisão e controle por meio do estabelecimento de regras e limites por parte dos pais, e o segundo como as habilidades de comunicação bilateral, acolhimento e de fornecimento de apoio emocional, o que favorece a autonomia e autoconfiança dos filhos. Os estilos parentais e suas características são:
- AUTORITÁRIO: elevada exigência e baixa responsividade.
- AUTORITATIVO: elevada exigência e elevada responsividade.
- PERMISSIVO: baixa exigência e alta responsividade
- NEGLIGENTE: baixa exigência e baixa responsividade.
Sabe-se que o estilo ‘autoritativo’ é aquele que mais atua como protetivo. Pais que atuam nesse estilo promovem um ambiente familiar equilibrado entre manifestações de afeto e cuidado com o estabelecimento e cobrança de regras e limites, tendo como característica central a boa comunicação e o diálogo.
De forma bastante sintética, dinâmicas familiares adoecidas, o que inclui a dependência e a co-dependência, apresentam algumas características em comum: má comunicação entres os membros, falta de clareza nos papéis e funções familiares, figuras maternas que não receberam o apoio que necessitavam nos primeiros anos de vida do bebê e por isso não conseguiram conter ou elaborar suas angústias, transmitindo-as aos seus filhos, figuras paternas ausentes (física ou afetivamente), segredos ou traumas familiares transgeracionais mal elaborados (o que pode envolver traições, mortes violentas, entre outros).
Valores e dinâmicas familiares estão em constante processo de mutação. É atrativa a ideia de comparação entre a “família de antes e a família do agora”, na tentativa de encontrar uma resposta sobre qual delas seria melhor. Mesmo que impossível fazer esse julgamento, podemos analisar algumas mudanças que ocorreram nas últimas décadas e como fomos afetados por elas.
Antes do surgimento dos smartphones e mídias sociais haviam questões sobre o funcionamento da instituição familiar que não nos deixa muita saudade, como a baixa percepção de risco sobre o tabagismo (pais fumavam dentro de casa, filhos eram tabagistas passivos), pais pouco afetivos e abertos para o diálogo, o patriarcado que dizimava a inteligência, as habilidades e o próprio corpo das mulheres e meninas, dinâmicas familiares muito rígidas com pouco espaço para as diferenças (muitos casamentos de fachada pelo medo da desaprovação social em decorrência de um divórcio, homossexualidades reprimidas, rigidez de crenças e rituais religiosos), estupros dentro da dinâmica familiar que nunca eram comunicados, o massacre da sensibilidade masculina, especialmente nas crianças, o estigma com a doença e deficiência mental (e o decorrente asilamento/institucionalização/marginalização dos ditos “loucos” e “diferentes”), dentre tantas outras questões que nunca poderiam ser nomeadas e verbalizadas num ambiente repressor, impessoal e de estruturas muito rígidas.
Podemos observar que atualmente a sociedade conseguiu ao menos identificar e iniciar um processo de mudança, mesmo que singelamente para melhor, no que diz respeito a desconstrução do patriarcado e da masculinidade tóxica, da rigidez nos vínculos familiares e da melhor aceitação das diferenças. Hoje é inaceitável para muitos que adultos fumem dentro de casa com a presença de crianças, apesar de não termos visto evolução na percepção de risco do abuso de álcool e episódios de embriaguez pelas figuras parentais, além de estarmos vendo uma contínua e intensa queda na percepção de risco sobre o uso da maconha. Acompanho muitos casos de pais que fazem uso dessa droga na presença de seus filhos, incentivando a baixa percepção de risco dos mesmos perante a droga, o que nos dá sinal de que a maconha está trilhando um caminho muito parecido ao do álcool, que há muitos anos é a droga que mais mata e causa morbidade em todo o mundo.
Vemos também a imersão no virtual de figuras maternas e paternas que muitas vezes direcionam para a tela do celular os olhares que deveriam ser de seus filhos. Tal fato tem levado muitos pais a atuarem no estilo negligente, sem nem ao menos perceber o que estão fazendo, ou seja, causando nas crianças a sensação de serem incapazes de ser amados, percebidos e cuidados. Do outro lado, a criança irá imergir no virtual no caso de este ser sua única opção de sentir-se, ao menos, distraídas de tantas sensações dolorosas que experencia quando em contato com o mundo real (não-virtual).
Logicamente que essa é apenas uma das formas de analisarmos um fenômeno que é tão maior e complexo. Devemos sempre lembrar: somos corpos e psiquismos desejantes de afeto, de trocas de cuidado. Nos colocaremos em movimento sempre em busca da realização desse desejo e, na impossibilidade de conseguirmos, iremos buscar meios de nos distrairmos da dura realidade. É neste ponto que os excessos e as repetições crônicas entram no jogo: trabalho, comida, sexo, álcool, outras drogas, compras, celulares e redes sociais, jogos, etc. As épocas mudam, mas as problemáticas permanecem as mesmas: como construir relações de amor com os outros e com nós próprios.
Sendo este um dos, se não o maior desafio de todos nós em vida, vão aí algumas dicas:
Pais, ofereçam apoio emocional à mãe e cuidem ao máximo das tarefas domésticas e práticas, como a administração do lar, até a criança completar pelo menos 2 anos, para que dessa forma a mãe possa se dedicar da melhor forma possível ao cuidado do bebê.
Mães, apresente seu filho ao pai, permitam que o pai entre na relação, mostrem ao seu filho que há uma relação de carinho entre você e seu marido e que ambos, você e ele, amam e podem cuidar dele. Abram espaço para o pai entrar.
Pai, construa seu espaço na relação triangular “mãe-criança-pai”, não aceite ser excluído, se faça presente de diferentes formas, seu filho precisa de você tanto quanto da mãe.
Marido e mulher, não tragam ao mundo uma criança para preencher vazios que são seus e somente seus. Filhos que já nascem receptores de tamanhas expectativas podem sofrer com isso de diferentes formas.
Do mais, é amor. Na dúvida do que fazer, demonstre seu amor, faça com que seu filho se sinta amado e respeitado.
Referências
- Sanchez ZM, Valente JY, Fidalgo TM, Leal AP, Medeiros PFP, Cogo-Moreira H. The role of normative beliefs in the mediation of a school-based drug prevention program: A secondary analysis of the #Tamojunto cluster-randomized trial. PLoS One. 2019;14(1). Available from: http://dx.plos.org/10.1371/journal.pone.0208072
- Valente JY, Cogo-Moreira H, Sanchez ZM. Predicting latent classes of drug use among adolescents through parental alcohol use and parental style : a longitudinal study. Soc Psychiatry Psychiatr Epidemiol. 2019;54(4):455–67.
- Valente JY, Cogo-moreira H, Sanchez ZM. Gradient of association between parenting styles and patterns of drug use in adolescence: a latent class analysis. Drug Alcohol Dependt. 2017. Available from: http://dx.doi.org/10.1016/j.drugalcdep.2017.08.015