Pesquisadores, usuários, familiares e sociedade debatem há muito tempo sobre o fenômeno da experimentação e da manutenção do uso problemático de drogas. Em resumo, o que se espera compreender é como tudo começa, os mecanismos orgânicos ou comportamentais que sustentam a doença, como evitar, como tratar, como lidar com o dependente dentro de casa, da […]
Pesquisadores, usuários, familiares e sociedade debatem há muito tempo sobre o fenômeno da experimentação e da manutenção do uso problemático de drogas. Em resumo, o que se espera compreender é como tudo começa, os mecanismos orgânicos ou comportamentais que sustentam a doença, como evitar, como tratar, como lidar com o dependente dentro de casa, da escola, do trabalho e como nós, eu e você, podemos nos proteger do mesmo destino. O pano de fundo desses questionamentos e da busca por suas respostas é o que de mais caro à humanidade podemos compartilhar, ou seja, o desejo de evitar o sofrimento e, se assim não for possível, acabar com ele o mais rapidamente possível.
Afinal, do que se trata o uso problemático de drogas? O mistério sobre qual perspectiva adotar para encontrar as respostas tão desejadas ainda permanece. Cientistas tendem a observar o fenômeno, colocando-se de fora do mesmo, atentando-se aos dados mensuráveis. Famílias tendem a considerar a trajetória da dinâmica familiar e a história das relações do usuário dentro dessa dinâmica. Políticos e gestores, de instituições públicas ou privadas, tendem a ater-se ao ambiente de convivência coletiva. O usuário… bem, somente ele poderá dizer como entende sua própria experiência com essas substâncias.
Interessantíssimo como a Teoria do Sistema de Recompensa Cerebral (1) explica os mecanismos neurofisiológicos da repetição da busca por sensações de prazer e a relação com neurotransmissores e suas ações em determinadas áreas cerebrais como sistema límbico e córtex pré-frontal, nos mostrando que a dependência de drogas pode ser compreendida a partir da perspectiva orgânica.
Essencial também a consideração da perspectiva espiritualista para a compreensão deste fenômeno, haja vista o imperativo em todos nós de acolhermos e introjetarmos a figura do pai protetor, que estabelece limites estruturantes, que não abandona, que orienta e dá forças para que possamos enfrentar a vida e sua intrínseca sensação de desamparo, finitude e incompletude. Para Xavier e Tomazelli (2), nesta perspectiva, a superação da dependência química passaria pela necessidade de o usuário substituir sua ‘religião degradada’ pouco eficiente e desumana, na qual o poder superior é oriundo do ‘Deus-Droga’, por uma religião mais humana e eficiente, conectada com um Deus-Pai-proteção-amor que lhe traz orientação e proteção, sem os sofrimentos e os conflitos psicossociais e familiares decorrentes de sua antiga submissão.
Na perspectiva comportamental é de suma relevância a identificação dos fatores de risco e dos fatores protetivos para a experimentação das drogas, para a manutenção de seu uso e para as recaídas no percurso da reabilitação. Depois de identificados e delineados, o objetivo seria fortalecer os fatores protetivos e suprimir ao máximo os fatores de riscos. Dentre os fatores de proteção já identificados, podemos citar os relacionados a qualidade dos vínculos dos jovens. Os estudos da área da ciência da prevenção têm demonstrado que, quanto mais intensos e fortalecidos os vínculos familiares/escolares, menores são as chances de os adolescentes se envolverem com o uso problemático de drogas. Além disso, também já foi comprovado que pais que monitoram os momentos de lazer dos filhos, estabelecem regras e limites e conseguem dialogar empaticamente com eles são pais que os protegem da exposição precoce às drogas (3–5).
Outro caminho de compreensão do fenômeno é o estudo da psicodinâmica na perspectiva psicanalítica. Neste sentido, Freud afirma que o uso de drogas pode ser uma ‘medida paliativa’ que dispensamos ao nos depararmos com a vulnerabilidade da experiência humana. Em sua obra O mal-estar na civilização (6) o autor afirma que
“A vida, tal como nos coube, é muito difícil para nós, traz demasiadas dores, decepções, tarefas insolúveis. Para suportá-la, não podemos dispensar paliativos. […] Existem três desses recursos, talvez: poderosas diversões, que nos permitem fazer pouco de nossa miséria; gratificações substitutivas, que as diminuem; e substâncias inebriantes, que nos tornam insensíveis a ela.”
Neste sentido, o uso dessas substâncias produziria no sujeito uma progressiva alienação de si mesmo, do real, do mundo humano e da convivência com os outros. “Outros” estes que, no contexto da dependência, são vistos como perigosos, acusadores e fontes de culpa que ameaçam a vida paradisíaca (não-humana) que o dependente quer viver (ou que vive em seu estado intoxicado e, portanto, desumanizado). O mundo real é experimentado como uma crueldade vinda do exterior contra ele e qualquer coisa que o desagrade é entendida como um ataque, uma provocação, uma perseguição contra ele e sua própria vida. Essa percepção de mundo leva o usuário ao constante uso dessas substâncias na tentativa (arrogante) de transformar-se no farmacêutico de si e alcançar a cura do mal que o outro e o mundo lhe causam.
Muitas outras linhas de investigação do fenômeno do uso problemático de drogas existem e esse texto não objetiva e nem conseguiria findar-se em expô-las em sua integralidade. Contudo, o que fica é o entendimento de que uma linearidade de raciocínio do tipo ‘causa e efeito’ no levantamento de hipóteses que possam tentar ampliar nossa compreensão da questão me parece pouco adequada e satisfatória em nos apresentar respostas que reflitam a realidade em sua completude, se assim um dia for possível.
Apesar do exposto, dentre tamanho caos e desconhecimento, o que posso assegurar é que será apenas no compartilhamento do viver em uma rede de apoio que ofereça contenção, suporte e acolhimento é que o usuário conseguirá ressignificar seus processos até ali e optar por uma nova experiência de se colocar nas relações que estabelece com as pessoas e sua cultura.
Referências
1. Formigoni MLO de S, Duarte P do CAV. SUPERA Módulo 2: Efeitos de substâncias psicoativas. SUPERA: Sistema para detecção do Uso abusivo e dependência de substâncias Psicoativas: Encaminhamento, intervenção breve, Reinserção social e Acompanhamento. São Paulo: Universidade Federal de São Paulo; Universidade Virtual do Estado de São Paulo; Secretaria Nacional de Políticas sobre; 2018. 164 p.
2. Xavier AA, Tomazelli E. Idealcoolismo: um olhar psicanalítico sobre o alcoolismo. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2012. 282 p.
3. Valente JY, Cogo-Moreira H, Sanchez ZM. Predicting latent classes of drug use among adolescents through parental alcohol use and parental style : a longitudinal study. Soc Psychiatry Psychiatr Epidemiol. 2019;54(4):455–67.
4. Fidalgo TM, Sanchez ZM, Caetano SC, Andreoni S, Sanudo A, Chen Q. Exposure to violence : associations with psychiatric disorders in Brazilian youth. 2018;277–83.
5. Sanchez ZM, Valente JY, Fidalgo TM, Leal AP, Medeiros PFP, Cogo-Moreira H. The role of normative beliefs in the mediation of a school-based drug prevention program : A secondary analysis of the # Tamojunto cluster- randomized trial. PLoS One [Internet]. 2019;1–17. Available from: http://dx.doi.org/10.1371/journal.pone.0208072
6. Freud S. O mal-estar na civilização. In: Sigmund Freud – Obras Completas Volume 18. São Paulo: Companhia das Letras; 2010. p. 13–123.