Algo que ainda não consigo nomear me provoca na obra de Friedrich Nietzsche. A intensidade de seus aforismos1 é quase palpável, suas palavras causam impactos, assim como quando nos percebemos diante do desconhecido, do indecifrável, do renegado, daquilo que, outrora, optamos por não olhar e reconhecer. Sua escrita é provocante, se coloca quase como um […]
Algo que ainda não consigo nomear me provoca na obra de Friedrich Nietzsche. A intensidade de seus aforismos1 é quase palpável, suas palavras causam impactos, assim como quando nos percebemos diante do desconhecido, do indecifrável, do renegado, daquilo que, outrora, optamos por não olhar e reconhecer.
Sua escrita é provocante, se coloca quase como um desafio a nossa coragem, nos faz questionar padrões. Incomoda os acomodados. A partir de sua leitura somos provocados a imaginar como seria uma existência ‘tresvalorada’2, na qual seríamos ensinados a reconhecer e amar nossas potências e habilidades. Um mundo onde os profetas do sobrenatural não arrecadariam súditos e onde entendêssemos que o divino se manifesta em cada um de nós, na dança sincronizada da águia e da serpente que nos habita.
Em ‘Assim falou Zaratrusta’, ele nos conta sua ideia de que
“O homem é como uma corda esticada entre o abismo e o Super-Homem – uma corda sobre um abismo. Uma perigosa travessia do abismo, um perigoso estar a caminho, um perigoso voltar atrás, um perigoso tremer e parar. O que engrandece o homem é ele ser ponte e não um fim; o que se pode amar no homem é ele ser uma transposição e não uma queda”
Somente esse parágrafo nos permitiria discorrer páginas e mais páginas sobre as ideias nele contidas. Então, para agora, quero chamar a atenção para a ideia do homem como uma ponte e não um fim, como uma transposição e não uma queda. O conceito de ponte está aqui alinhado com o de transposição, e o de fim com o de queda.
Uma ponte é aquilo que liga dois lados opostos, que sobrepõe o abismo, que permite atravessar por cima dele, que pode nos levar do antigo e conhecido até o novo e desconhecido, que nos permite conhecer o outro lado, alcançar novidades, continuar caminhando e fluindo para adiante, que impede a estagnação. Já transposição é o ato de transpor-se, de transferir de um local para outro, mantendo uma ligação com o anterior até que se dê a implantação completa do novo. E para concluir, o fim poderia ser entendido como a queda no abismo. O perder-se, o tremer e parar, a não superação, a renegação da potência de vida, a não aceitação do devir, o não transpor-se, a negação da reinvenção e da novidade, a crença absoluta, o rígido e concreto, as respostas prontas, que matam as perguntas e decretam…, o fim.
A ilustração filosófica da ponte na experiência humana também foi citada na obra “Amor Líquido”, de Zigmunt Bauman. Ao discorrer sobre a construção de uma família, onde os filhos seriam entendidos como “pontes entre a mortalidade e a imortalidade, entre uma vida individual abominavelmente curta e a esperada finitude da duração de uma família”, o autor afirma que
“[…] a margem a que esta ponte conduz está coberta por uma neblina que ninguém espera que venha a se dissipar, e portanto é improvável que provoque muita emoção, menos ainda que alimente o desejo inspirador da ação. Se uma súbita rajada de vento viesse a afastar a neblina, ninguém sabe ao certo que tipo de margem iria se revelar, nem se da névoa emergiria uma terra suficientemente firme para sustentar um lar permanente. Pontes que levam a lugar nenhum, ou a nenhum lugar em particular: quem precisa delas? Para quê? Quem perderia seu tempo e seu bom dinheiro para planejá-las e construí-las?”.
Bauman, muito mais sarcástico e irônico neste livro do que em suas primeiras obras, nos provoca apontando o tamanho de nossa covardia para atravessar uma ponte que, mesmo sabendo que nos levaria a lugares novos e poderia nos tirar de uma realidade vazia e miserável, é renegada por nós pelo medo que temos do novo e do incerto. Para Nietzsche, esse é o fim do homem, sua queda, quando mesmo diante de possibilidades ele escolhe pela segurança e mesquinhez da comodidade e da segurança do conhecido.
Aceitando que talvez nunca tenhamos a resposta para a pergunta sobre qual é o sentido da vida, nos resta decidir sobre quais sentidos queremos criar para ela. E é a partir dessa ideia que Nietzsche nos provoca a repensar nosso dia a dia, nossos sonhos, nossas escolhas, nossos valores e o que fazemos diante de todas as possibilidades que nos são abertas a cada instante. A potência de vida está dentro de cada um de nós: o que você tem feito com a sua?
1. Aforismos – “Máxima ou sentença que, em poucas palavras, explicita regra ou princípio de alcance moral; apotegma, ditado” (dicionário Houaiss)
2. Tresvaloração – ” Emissão de uma apreciação ou avaliação que transcende os limites do juízo de valor. A moral consiste na transvaloração de todos os valores, em um desprender-se de todos os valores morais, e um confiar e dizer Sim a tudo o que até aqui foi proibido,desprezado” (tentativa de explicação sucinta do conceito de TRESVALORAÇÃO de Nitezsche)