O período entre dia 31 de dezembro e 01 de janeiro é aquele recorte de tempo em que não estamos nem lá e nem cá, flutuando entre o que já foi e o que está por vir. Se existe um momento em que podemos perceber e quase tocar com os dedos o quanto todos somos […]
O período entre dia 31 de dezembro e 01 de janeiro é aquele recorte de tempo em que não estamos nem lá e nem cá, flutuando entre o que já foi e o que está por vir. Se existe um momento em que podemos perceber e quase tocar com os dedos o quanto todos somos altamente influenciados por ideias que nos são contadas por sabe-se lá quem e que determinam a forma como vivemos, é nesses dias.
O “delírio coletivo do fim do ano” é caracterizado por um estranho e calmo modo que os carros se locomovem durante o dia e um agitado e perigoso trânsito na noite, shoppings cheios durante o dia e bares lotados a noite, supermercados lotados seja de dia ou de noite, por ruas, parques e avenidas invadidas por sorridentes e esbaforidos transeuntes lhe desejando bom dia enquanto tentam correr aqueles 5km da promessa do réveillon passado com suas roupas fitness cheirando a nova e com suas barrigas acumuladas ao longo do ano, por novos ciclistas que arriscam sua vida (e parecem não perceber) nas rodovias para se sentirem cheios de saúde assim como não conseguiram nos últimos 12 meses (acho que o ciclismo é o esporte que mais cresce nessa época do ano), por rodovias engarrafadas à caminho das praias, além é claro do mau humor do pessoal que tem que trabalhar enquanto acham que são os únicos no mundo inteiro que não estão ascendendo uma churrasqueira as 11:00h. E haja carvão e cerveja.
Não sei você, mas até que me divirto nesse clima de férias coletiva da humanidade. Geralmente as pessoas ficam mais bem-humoradas e parecem até, olha que espanto, notar que existem outras pessoas ao seu redor! Acaba aquela correria cega e desenfreada de robozinhos com seus despertadores tocando as 5:30h, montando em seus carrões (ele sempre acha que tem um carrão) e acelerando os coleguinhas pelas ruas, circulando com seus tablets e notebooks em busca de dinheiro para… talvez comprarem uma bike no final do ano e darem um rolê na rodovia ou, quem sabe, pegar 8 horas no trânsito para passar 3 dias na praia bebendo igual poderiam fazer na sacada de seus apartamentos (porque depois da quarta latinha e segunda caipirinha já não faz diferença onde está). Cômico.
E no clima desse delírio coletivo celebramos o símbolo do Reveilon e da contagem do tempo em formato de segundos, minutos, horas, dias, semanas, meses e anos. Mais um ano se encerra e mais um se inicia. Festas, pessoas reunidas, música, muita droga e, BUM!, chegou o dia 02 de janeiro. E agora? Só continuar vivendo? O corpo é o mesmo (os 30km com a bike nova na rodovia ou os 5km no parque não foram suficientes para diminuir sua celulite ou a pochete), as pessoas dentro de sua casa são as mesmas, o chefe é o mesmo, o vazamento da torneira da cozinha ainda precisa ser arrumado, o carro ainda está sujo, seu cachorro não virou um border collie e ainda come seu chinelo e os milhões da mega da virada não caíram na sua conta. O que fazer?
Vazio. Tédio. Angústia. Medo. Impotência. Tristeza. Solidão. De novo o vazio. Abre-se uma cratera bem no meio do peito que mais parece um buraco negro que vai sugando tudo de vida que está ao redor. Nessa hora a gente entende o que é ser a barata Kafkiana, ou seja, o pior dos seres, o indesejável e asqueroso. Retornamos, ou pelo menos nos sentimos retornando ao estado inanimado daquilo que não comporta vida, daquilo que nada vislumbra. Quem sou eu e o que eu quero? Se tudo é tão supérfluo e perecível? Alguns mais incomodados e profundos podem se perguntar: o que é permanente na impermanência do tempo? É isso que trará sentido à minha vida, já que o carrão, o casarão, o corpão e os likes do instagran não me impediram de sentir esse vazio dolorido no peito?
Não há como fugir das questões essenciais. Não há praia e cerveja, churrasco e caipirinha, maconha e balada, trabalho ou mídia social que dê conta de abafar definitivamente dentro de nós a inquietude diante da complexidade do que é ser e existir no mundo. Prazeres momentâneos são distrações que encontramos na tentativa de não sentirmos o vazio de propósitos e significados em nossas vidas. Quanto maior o vazio, mais intensa é a busca pelo prazer momentâneo. Frustrações, decepções, lutos e quaisquer outros tipos de dores são enfrentadas quando sentimos que vale a pena, que existe um valor que reside em nossa experiência de existir. O valor de sermos e como ele se manifesta nos propósitos de fazermos é o que pode haver de permanente na jornada da vida.
As vezes sou profundamente tocada quando me deparo com profetas e gurus dos tempos modernos que tem como habitat as redes sociais. Pessoas que querem dizer a outras pessoas como pensar e o que fazer de suas vidas.
Vazio, vazio e mais vazio. Como barquinhos navegando na lagoa, se movimentam na superfície e em círculos infinitos, conclamando por mais barquinhos-seguidores de uma filosofia que nunca poderá, paradoxalmente, se aprofundar, pois, desta forma, encontraria seu fim.
Este texto não terá em seu último parágrafo uma epifania capaz de transformar sua vida. Não apresentará nenhuma grande ideia que você poderá copiar e colar em sua existência para se sentir mais feliz e realizado. Não, não. Por aqui não há consideração por esse tipo de ‘coisa’. Esse texto terminará como esse ano de 2023 terminou: apresentando a você uma página em branco. Somente você, com suas ideias, pensamentos e sentimentos será capaz de decidir o que fazer com esse vazio, e sua decisão contará sobre quem você é. Afinal, não é isso que você se perguntou o ano inteiro?
FIM