ATENÇÃO: ESSE É UM TEXTO DIRECIONADO À PROFISSIONAIS ATUANTES OU INTERESSADOS NA CLÍNICA PSICANALÍTICA. PORTANTO, NÃO É DIRECIONADO AO PUBLICO LEIGO, QUE PODE ENCONTRAR DIFICULDADES EM COMPREENDER O CONTEÚDO EXPOSTO. É preciso primeiro ser um para depois ser dois É preciso primeiro unir para depois separar É preciso primeiro confiar para depois vir a ser […]
ATENÇÃO: ESSE É UM TEXTO DIRECIONADO À PROFISSIONAIS ATUANTES OU INTERESSADOS NA CLÍNICA PSICANALÍTICA. PORTANTO, NÃO É DIRECIONADO AO PUBLICO LEIGO, QUE PODE ENCONTRAR DIFICULDADES EM COMPREENDER O CONTEÚDO EXPOSTO.
É preciso primeiro ser um para depois ser dois
É preciso primeiro unir para depois separar
É preciso primeiro confiar para depois vir a ser
Indivíduos numa relação problemática com drogas de abuso compartilham uma característica comum: estado fusional com a figura materna e a não-assimilação da figura paterna. Para Freud, a figura paterna introduz a criança ao princípio da realidade, estabelecendo limites e interdições por meio de sua simbologia moral, especialmente na triangulação edípica. Nesse momento, a criança, impulsionada pelo desejo de identificação e pela angústia de castração diante do pai, pode iniciar o processo de individuação e diferenciação do objeto primário. A compreensão clássica é que o uso de drogas representa uma regressão a estados primitivos, permitindo ao adulto intoxicado resgatar o prazer do pensar e agir livre, desprovido de interdições lógicas e morais. A partir disso, como pensar o uso problemático de drogas a partir dos conceitos centrais da teoria de Winnicott?
Um amplo espectro de interpretações se abre. Se falamos de estado fusional do indivíduo com o objeto primário (figura materna), talvez a partir da teoria winnicottiana podemos pensar a mãe que não foi suficientemente boa em sentir e atender às necessidades de seu bebê e de prover um conjunto de cuidados necessários ao desenvolvimento da criança em seu estado de preocupação materna primária, o que permitiria, dessa forma, sua espontânea e livre continuidade de ser (Winnicott, 1956). Cuidados estes compreendidos como o fundamento da futura capacidade de confiar deste indivíduo.
A essencialidade do desenvolvimento da capacidade de confiar transcreve-se no fato de que o indivíduo só evolui do estado de dependência na condição em que consegue confiar em seu ambiente. Para Winnicott, a palavra que traduz um ambiente facilitador para o desenvolvimento sadio do infante em sua continuidade do ser é “previsilidade”. Um ambiente previsível é aquele que não interrompe, não assusta, não invade a quietude do vir a ser do infante, ou seja, que transmite confiança. A continuidade do ser é interrompida sempre que o infante é demandando diante de uma intrusão oriunda do ambiente. Apenas quando cessada a intrusão é que pode retornar ao ser. Considerando que nos primórdios da vida esse ambiente é a mãe-ambiente, a primeira experiência de confiança que irá determinar todo o percurso evolutivo psíquico do infante, se dará pelas condições da mãe de maternar.
“A mãe deve tentar não permitir que o bebê seja alcançado por complicações maiores que a que se encontram dentro de sua capacidade de tolerar, e tratar especialmente de isolá-lo das coincidências e de outros fenômenos que estarão forçosamente fora das suas possibilidades de compreender. De um modo geral, ela tenta manter o mundo do bebê tão simples quanto possível”
(Winnicott, 1954a)
Contudo, quais falhas podem ter havido nestes processos que culminam numa psicodinâmica patológica do sujeito adulto dependente de droga?
Para tentar responder a essa pergunta é inevitável traçar um caminho teórico-clínico que transpassa os conceitos de objetos transicionais e regressão à dependência. Para tanto, também é necessária a compreensão da evolução do bebê do estágio da dependência para o da independência. Nos primeiros estágios de amadurecimento humano, o bebê vive em um estado de dependência absoluta (do ambiente ou mãe-ambiente). Ao longo desse desenvolvimento, quando tudo corre bem, o indivíduo progride no sentido da independência (sempre ‘independência relativa’, pois, para Winnicott, se há vida, há dependência). Num estado de relativa independência, a pessoa pode sentir-se vivendo uma vida real e que vale a pena ser vivida. Este processo de evolução também pode ser entendido como uma tendência à integralização de um ser inicialmente não-integrado, que se inicia no processo de identificação primária com a mãe e apresentação ao Uno-pai.
Evoluindo a partir do estágio de dependência absoluta, o bebê adentra ao estágio da dependência relativa, caracterizada pela desilusão, início da integração no tempo e espaço, transicionalidade e uso do objeto, ou, em outras palavras, início do contato com a realidade (Winnicott, 1960). Nas primeiras tentativas saudáveis de integralização do EU nesse período de transicionalidade, o bebê pode agarrar-se a um algo concreto que carrega intenso simbolismo, o objeto transicional, que representa a um só tempo os fenômenos do mundo externo e os fenômenos da pessoa individual (Winnicott, 1971). É este período transicional entre o polegar e o ursinho, entre o erotismo oral e a verdadeira relação de objeto, entre a criatividade primária e a projeção do que já foi introjetado, que, ao meu ver, é onde o psiquismo do adicto está fixado. Estado de um EU ainda não integrado, de um self ainda nem verdadeiro e nem falso, um não entendimento do sentir, um estado de reação à intrusão no qual o sujeito realiza repetidas e infinitas tentativas de auto-conservação no apegar-se ao objeto-substância que lhe fornece uma ligeira sensação de existir na concretude de seu corpo, parte esta que migrou para a realidade enquanto o psiquismo reluta em se manter na fusão com a mãe-ambiente.
Estando o sujeito nesta condição, no setting analítico o analista ocupa o papel da mãe-ambiente. É notável a tendência a regressão à dependência na busca de sentir-se em estado primitivo desprovido de demandas da realidade (pensar, refletir, analisar, ponderar, reprimir), intoleráveis ao sujeito de corpo adulto e mente pré-simbólica. De forma geral (sem querer incorrer ao risco de abjetas generalizações), os dependentes crônicos de drogas podem ser entendidos como analisandos da terceira categoria, de acordo com Winnicott em “Aspectos clínicos e metapsicológicos da regressão no contexto analítico” (1954b), ou seja, nos apresentam demandas de estágios iniciais do desenvolvimento emocional que são anteriores ao desenvolvimento de uma personalidade integrada. O manejo clínico ocupa quase a totalidade do setting e a função do analista é praticamente a de oferecer sustentação, segurança e contenção (holding e handling). Este paciente irá regredir em nosso setting e o seu movimento de regressão pode ser entendido como um mecanismo de defesa do ego que não confia e que, portanto, precisar retornar à falha original agora numa organização ambiental apropriada (e especializada, provida pelo bom trabalho analítico) (Winnicott, 1954b), desejante de sentir-se capaz e seguro para confiar e personificar.
O conceito de ‘regressão à dependência” de Winnicott enriquece a capacidade do analista de interpretar os conteúdos transferenciais oriundos de pacientes com um Eu não [completamente] integrado e com um falso self. Neste aspecto, o regredir à dependência tem a qualidade de cura, pois possibilita a reformulação de experiências precoces e o caminhar em direção à independência. Se o objeto de compulsão, neste caso a droga de abuso, tem a representatividade e a complexidade do objeto transicional, podemos inferir que esse caminhar rumo a independência/diferenciação do EU, também representa o movimento de encontro à independência em relação a droga. Isso seria possível na construção de uma abertura de possibilidade do self verdadeiro surgir em sua grande dimensionalidade, por meio do desenvolvimento da capacidade de confiar do analisando em resposta à transferência positiva estabelecida com o analista.
Referências
Winnicott, D. W. (1954a). A mente e sua relação com o psique-soma. In: Da Pediatria à Psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco Alvez, 1978.
Winnicott, D. W. (1954b). Aspectos clínicos e metapsicológicos da regressão no contexto analítico. In: Da Pediatria à Psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco Alvez, 1978.
Winnicott, D. W. (1956). A preocupação materna primária. In: Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas (pp. 399-405). Rio de Janeiro: Imago.
Winnicott, D. W. (1960). A teoria do relacionamento pais-bebê.
Winnicott, D. W. (1971). O lugar em que vivemos. In: O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.