A popularidade do termo “Humanizar” na área da saúde tem seus primórdios no Brasil associado a publicação da Política Nacional de Humanização pelo Ministério da saúde em 2010. Nessa publicação humanização é entendida como “a valorização dos diferentes sujeitos implicados no processo de produção de saúde: usuários, trabalhadores e gestores. Os valores que norteiam essa […]
A popularidade do termo “Humanizar” na área da saúde tem seus primórdios no Brasil associado a publicação da Política Nacional de Humanização pelo Ministério da saúde em 2010. Nessa publicação humanização é entendida como
“a valorização dos diferentes sujeitos implicados no processo de produção de saúde: usuários, trabalhadores e gestores. Os valores que norteiam essa política são a autonomia e o protagonismo dos sujeitos, a co-responsabilidade entre eles, o estabelecimento de vínculos solidários, a construção de redes de cooperação e a participação coletiva no processo de gestão. […] reconhecendo os gestores, trabalhadores e usuários como sujeitos ativos e protagonistas das ações de saúde”
Desde então este termo e sua consequente proposta de reflexão vem ganhando notoriedade, extrapolando as barreiras do SUS e migrando para outros contextos de rede e settings terapêuticos. Sabemos que esta é uma pauta necessária… mas talvez não saibamos afirmar com toda a certeza o porque e o que fazer com isso. Se há uma necessidade crescente de discutirmos Humanização nos cuidados em saúde, significa que processos ‘desumanizantes’ vem sendo percebidos.
Se Humanizar significa “tornar humano, dar condição humana, humanizar”, “tornar benévolo, afável, tratável” (Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa, 2009), desumanizar seria destituir a humanidade das pessoas envolvidas no processo de cuidados em saúde?
Seria então o fenômeno que tentamos dar contornos um processo objetificação do humano? Quem estaria sendo objetificado: paciente? médico? Os dois? O que poderia estar motivando este processo?
Foquemos na relação médico-paciente.
Poderíamos hipotetizar que o avanço tecnológico da medicina e seu paralelo com a hiper-especialização dos cuidados oferecidos poderia ser uma resposta.
“Se por um lado mergulhamos fundo em questões e conseguimos centrar o olhar no que antes era imperceptível/microscópico, por outro, parece termos perdido a capacidade de enxergar além de nossos livros ou microscópios” (Peter Schulz)
Isso porque o avanço tecnológico que instrumentaliza cada vez mais o profissional médico e que cobra na mesma proporção que este profissional seja conhecedor avançado das minuciosidades de cada tecido, órgão e sistema, pode estar conduzindo a formação e a atuação médica em direção a um olhar afunilado, hiperfocado e atrofiado, que entende cada vez mais sobre a técnica cirúrgica revolucionária, sobre as expressões gênicas, sobre os fenômenos na fenda sináptica, mas que talvez desconheça o terreno onde se dão tais fenômenos. O órgão ocupa um corpo, este corpo é detentor de subjetividades, poder simbólico, uma cultura, sensibilidades e emoções. A afunilação do saber desconhece a totalidade do ser cultural e simbólico. Ao mesmo tempo que estamos cada vez mais aptos a salvar vidas, proporcionalmente podemos estar perdendo a habilidade de agregar qualidade a estes anos de vida conquistados.
Estamos cada vez mais especializados em salvar tecidos e órgãos, cada vez mais capazes de desenvolvermos raciocínios clínicos imediatos e curativistas, cada vez mais bem instrumentalizados pela tecnologia dura e isso é muito bom. Não devemos parar. Afinal de contas, o desejo maior que move a todos nós é o desejo pela vida (ou extensão da vida?) e evitar mortes é uma missão do médico. Mas seria a única?
Curativista: Característica do que é relativo à cura, recuperação e reabilitação da saúde, dando ênfase à cura das doenças, em vez de promover a saúde e a prevenção das doenças.
A medicina dos cuidados paliativos está por aí, para responder que não. A medicina da família, a medicina preventiva, a medicina reprodutiva, epidemiológica e sanitária, a psiquiatria também. Não estamos aqui somente para evitar mortes, estamos aqui para sermos provedores de saúde, qualidade de vida e de bem estar, por meio do acolhimento compassivo do sofrimento do outro em todas as etapas da proposta de cuidado.
Mas… estamos sendo formados ou nos sentimos capacitados para isso?
Como estamos acessando a forma como nosso paciente percebe e se implica em seu tratamento? Como que é para nós lidarmos com a subjetividade e emoções de nossos pacientes? Ou seja, como anda nossa capacidade de vinculação?
É neste ponto que digo a vocês que eu não acredito que somente a hiper-especialização na medicina seja capaz de explicar a desumanização do cuidado e a objetificação do nosso paciente. Existe algo que anda ao lado, sorrateiramente, e que precisa ser, urgentemente, trazido à luz, nomeado.
Em média, 300 a 400 médicos cometem suicídio por ano em todo o mundo. No Brasil, entre os anos de 2000 a 2009, o suicídio foi a segunda maior causa de mortes entre médicos, perdendo apenas para acidentes automobilísticos. Médicos se suicidam 5x mais que a população geral.
Suicídio, transtornos do humor e de ansiedade, além de dependência química são encontrados em taxas sempre muito mais elevadas entre profissionais da saúde, quando comparados com a população geral.
67,5% dos médicos declaram conhecer algum colega com problemas relacionados ao uso de substâncias. Esse índice foi de 41,0% quando a pergunta era acerca do abuso de drogas disponíveis em ambiente cirúrgico.
(Fidalgo e Silveira, 2008)
Isso adquire importância ainda maior quando se considera que tais patologias apresentam enorme impacto não só na qualidade técnica do atendimento oferecido, mas, também, no tipo de relação médico-paciente que se estabelece. A sensação é que parece haver um “não-dito” na medicina, caracterizado pela necessidade extrema de esconder dos outros e principalmente de si mesmo o medo inconsciente se sua própria morte e de lidar com seu próprio sofrer.
Pessoas em sofrimento que cuidam de pessoas em sofrimento.
Como isso vem acontecendo?
Neste ponto estamos diante de um fenômeno de grande relevância para esse momento de reflexão: a transferência e a contratransferência na relação médico-paciente. A transferência é o movimento inconsciente do paciente em direção ao seu médico: ele transfere para seu médico/coloca nele parte de seu afeto naquele momento: sua tristeza, sua raiva, angustia, solidão, desespero, pessimismo, expectativas. Como o médico responde a esse conteúdo afetivo que lhe foi transferido é o que chamamos de contratransferência. E pergunto: Qual a condição do médico para receber tais afetos?
Como o médico reagirá diante do conteúdo transferencial de seu paciente irá depender de até onde ele já chegou na elaboração e cicatrização de sus próprias feridas emocionais e na sua habilidade de compreender o que é seu e o que é o conteúdo transferido para si de seu paciente. Tarefa difícil. Se eu estou perdido em minha dor, com certeza irei me perder ainda mais quando a minha dor se mistura com a dor do meu paciente.
A partir do conceito de transferência, Ballint, psicanalista e autor do livro “O médico, seu paciente e a doença”, desenvolveu a categoria médico medicamento ou droga, referida ao efeito do profissional sobre o paciente: nesse sentido o médico pode ser medicamento ou veneno. Segundo Ballint, a personalidade do médico tem papel determinante na dinâmica relacional clinica e, por essa razão, ele deveria ser capacitado para saber olhar seus próprios métodos e reações diante do paciente.
Diante desta complexidade, de tantos desafios sorrateiros e não verbalizados, estes profissionais acabam desenvolvendo mecanismos adaptativos em seu dia-a-dia a fim de se proteger: são os mecanismos de defesa. Mecanismos de defesa possibilitam a mente desenvolver uma solução para conflitos, ansiedades, hostilidades, impulsos agressivos, ressentimentos e frustrações não solucionados ao nível da consciência. Nossa mente busca soluções, busca segurança e senso de resolutividade. Os mecanismos de defesa protegem o ego, são impulsos de auto conservação. A grande questão é, que a depender da intensidade e frequência com que ocorrem, podem não somente prejudicar o adequado diagnóstico e a terapêutica proposta, como também as suas próprias relações pessoais, profissionais e seu autocuidado, uma vez que o médico (agora também paciente) nega sua condição de doente, escondendo suas dificuldades emocionais dos colegas, da família e de si mesmo1
Os mecanismos de defesa sãos amplamente utilizados por todos nós, ou seja, não são exclusividade dos profissionais da saúde, muito menos dos médicos. Trarei aqui alguns deles para nossa reflexão.
– Negação: ela consiste na recusa do sujeito a aceitar a existência de uma situação penosa demais para ser tolerada, ou seja, o sujeito dá como inexistente um pensamento ou sentimento que, caso ele admitisse como verdadeiro, causaria grande angústia. Ex: negar o sofrimento de um paciente obeso que não consegue perder peso e que come compulsivamente pois entrar em contato com essa questão iria fazer com que o próprio médico percebesse sua fragilidade e impotência em relação as suas próprias compulsões (comida, trabalho, sexo, drogas, álcool) o que lhe causaria grande angústia.
– Projeção: O sujeito vai atribuir a objetos externos aspectos psíquicos que lhe são próprios, mas que não reconhece como seus. É uma forma de deslocar para fora e atribuir a outras pessoas seus próprios sentimentos, ideias, motivos, desejos e traços de caráter que se quer negar. Ex: ao ser incapaz de tolerar a angústia despertada pelo ódio que sente de fulano X, inconscientemente muda a sua atitude “eu odeio o fulano X” para “o fulano X me odeia”. É aquela velha história “quando joão fala de pedro, eu sei mais de joão do que de Pedro”.
– Formação reativa: É um mecanismo que tende a inverter o impulso indesejado, substituindo-o pelo seu oposto. Exemplo: a pessoa que tem desejos homossexuais reprimidos e que se comporta como uma heterossexual pervertido.
Trazendo para nosso contexto pensemos nos mecanismos dos quais os médicos poderiam dispor para se proteger do sofrimento se seu dia a dia: ele pode negar a dor e o sofrimento de seu paciente por, inconscientemente, sentir que não tem condições emocionais de sustenta-los sem desmoronar. Ele pode não se sentir capaz de oferecer conforto ao seu paciente (aqui podendo fazer uso da ironia ou da recusa no ouvir – consultas rápidas, com perguntas fechadas, sem contato visual, entre outros mecanismos), ou pode não entender do que se trata o sofrer ou a doença do paciente e para não demonstrar esse não-saber, nega que aquilo exista. A postura arrogante e fria é a representação clássica da negação e da formação reativa, pois sua arrogância e frieza é inversamente proporcional a sua insegurança, medo e aflições.
Hipócrates, pai da Medicina, em um de seus aforismos já aconselhava: “Médico, cura-te”. Palavras sábias que ainda hoje encontram ressonância.
Estudo realizado com a classe médica neste ano demonstrou que:
- 33% se sentiam menos dispostos a ouvir e responder atentamente seus pacientes
- 29% apresentavam aspecto menos amigável no atendimento
- 20% ficavam irritados com mais facilidade com os pacientes
- 11% cometeram erros simples que poderiam ter sido evitados
- 4% cometeram erros graves que poderiam ter impactado gravemente os pacientes
Sinais claros de sofrimento intenso, possivelmente associados a um quadro de burnout, tão prevalente entre a comunidade médica.
Não podemos esquecer que muitas vezes o médico precisa se curar da:
- Interesses mercantilistas dos empregadores que os obrigam a fazer mais com menos
- Exigência de desempenhar várias tarefas ao mesmo tempo
- Cobrança por produção
Como falar de humanização do cuidado, sem falar da necessidade de cuidados de nossos próprios médicos?
Há muito do que se curar. E continuamos escolhemos estar aqui.
Conscientizemo-nos que vivemos nossas decisões e escolhas. Se colocar na companhia do outro-paciente é o que escolhemos para nós.
Além de todas as condições externas adoecedoras as quais os médicos estão expostos, lembremo-nos que muitas vezes o pior chefe de nossas vidas é aquele que mora em nós mesmo: a Auto-cobrança diante de um ideal de Eu quase sobre-humano/ super-humano é a pior fonte de sofrimento de qualquer um de nós. Esse ideal de EU não nos permite descansar, gozar do ócio, reconhecer nossos limites, fazer valer nossos limites diante do outro, alegrarmo-nos com nossas pequenas e grandes conquistas. É preciso abrandá-lo.
Estejamos atentos até onde estamos dispostos a ir, qual o custo que aceitamos pagar a fim de sustentar nossas escolhas e preferências, e também que possamos perceber que nosso limiar de tolerância para a sustentação de angustias pode ser aprimorado com a busca por autoconhecimento. Assumir fragilidades e vulnerabilidades nos torna mais humanos e menos suscetíveis ao adoecimento.
A forma como cuidamos do sofrer do outro, denuncia a forma como cuidamos de nosso próprio sofrer.
Se conseguirmos entender e elaborar como temos manejado nossas próprias frustrações, dores e traumas ao longo de nossas vidas, seremos capazes de perceber como fazemos com o outro e, por fim, poderemos aprimorar nossa capacidade de vinculação com o outro-paciente, agora que eu já aprendi a dar as mãos para o meu paciente interno e não mais rejeitá-lo, diminuí-lo ou negá-lo.
Isso que é a mais pura essência do humanizar os envolvidos no processo de cuidar: cuidando de quem cuida, estamos cuidando do tomador desse cuidado.
E que não esperemos que esse cuidado venha apenas de fora, que saibamos ser o melhor cuidador de nós mesmo. O melhor cuidado com o outro, começa com o melhor cuidado consigo mesmo.
Referências
Castelhano LM, Wahba LL. O discurso médico sobre as emoções vivenciadas na interação com o paciente: contribuições para a prática clínica. Interface (Botucatu). 2019; 23:e170341
Deslandes, Suely F.Análise do discurso oficial sobre a humanização da assistência hospitalar. Ciência & Saúde Coletiva [online]. 2004, v. 9, n. 1 [Acessado 12 Novembro 2022] , pp. 7-14.
Waldow, Vera Regina e Borges, Rosália FigueiróCuidar e humanizar: relações e significados. Acta Paulista de Enfermagem [online]. 2011, v. 24, n. 3 [Acessado 12 Novembro 2022] , pp. 414-418.
Ballint, Michael. O médico, seu paciente e a doença. Ed. Atheneu, 1988.
Entrevista Peter Shulz. Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/159-entrevistas/616693-um-olhar-micro-e-uma-cegueira-macro-a-hiperespecializacao-da-ciencia-leva-a-atrofia-de-um-ser-humano-integral-entrevista-especial-com-peter-schulz
Fidalgo T M, Silveira D X. Uso indevido de drogas entre médicos: problema ainda negligenciado. J Bras Psiquiatr. 2008;57(4):267-269.